Enterrados no Jardim Podcast By Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho cover art

Enterrados no Jardim

Enterrados no Jardim

By: Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
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Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.© 2024 Enterrados no Jardim Art Literary History & Criticism Social Sciences
Episodes
  • Alice no País das Finanças. Uma conversa com Ricardo Paes Mamede
    Jun 5 2025
    Não anda longe o momento da atomização absoluta, da conversão de cada um de nós em figuras que se diluem num espelho programado, numa miragem que nos absorve como Narcisos do curso de águas digitais. Há coisas que não se podem traduzir, nem espelhar entre mundos, sob o perigo obscuro de se produzir um reflexo subtilmente monstruoso e que pode bem contaminar ou assombrar o original. Mary Shelley disse algo nesta linha, mas de forma tão astutamente memorável que a frase se torna em si mesma um narcótico: "We are unfashioned creatures, but half made up, if one wiser, better, dearer than ourselves — such a friend ought to be — do not lend his aid to perfectionate our weak and faulty natures." (Somos criaturas imperfeitas, meio inventadas meio incompletas, perdemo-nos se alguém mais astuto, e que nos é mais querido até do que somos para nós próprios — como é suposto que um amigo seja — não estender os seus cuidados à nossa natureza fraca e imperfeita.) Precisamos de figuras por quem possamos nutrir uma admiração sincera. Hoje, e num momento de projecções contaminadas pelo poder, que apenas são capazes de se organizar segundo estratégias de valorização, de ambição e promoção pessoal, as relações tendem a ser construídas em função das estratégias de valorização, mas o poder, como assinalavam os situacionistas, neutraliza a linguagem: "Sob o domínio do poder, a linguagem designa sempre algo que não é o vivido autêntico. É precisamente nisso que reside a possibilidade duma contestação completa. A confusão tornou-se de tal ordem, na organização da linguagem, que a comunicação imposta pelo poder se desvenda como uma impostura e um logro. Em vão um embrião de poder cibernético tentará pôr a linguagem na dependência das máquinas que controla, de maneira a que a informação se torne a única comunicação possível." O que os situacionistas não previram foi como a realidade seria inteiramente contaminada por essa forma de ficção dirigida e que digere por completo o horizonte de cada indivíduo. Em breve, será necessário pagar pacotes de extensão do vocabulário, conceitos mais finos, certas noções e termos serão abandonadas por serem tidas como nocivas, por poderem pôr em causa a eficácia programada. "O poder apenas fornece o falso bilhete de identidade das palavras, impõe-lhes uma licença de passagem, determina o seu lugar na produção (onde algumas visivelmente fazem horas extraordinárias); atribui-lhes, por assim dizer, uma folha de salário. Devemos reconhecer a seriedade do Humpty-Dumpty de Lewis Carroll, ao considerar, quanto a isso de uma pessoa decidir sobre o emprego das palavras, que toca a questão reside em 'saber quem será o dono' delas; nisso e em mais nada. E ele, patrão de vistas largas, afirma que paga a dobrar àquelas que emprega muito. Devemos pois entender assim o fenómeno da insubmissão das palavras, a sua fuga, a sua resistência aberta, que se manifesta em toda a escrita moderna (de Baudelaire os dadaístas e a Joyce) como sintoma da crise revolucionária global que se regista na sociedade." Hoje são cada vez mais raros aqueles que fazem um uso da linguagem segundo este ânimo insubmisso, ou até minimamente insolente. Combater a relação de dominação, deveria implicar um desvio contra a eficácia e os quadros de previsão com o qual operam os algoritmos em proveito da linguagem, numa oposição ao informacionismo moderno, aos modelos de simplificação, que reforçam as lógicas de "comunicação" unilateral. Como vincam os situacionistas, "o poder vive de receptação". "Não cria nada, só recupera. Se ele criasse o sentido das palavras, não haveria poesia, haveria apenas 'informação' pragmática. Nunca poderíamos opor-nos adentro da linguagem e toda a recusa seria exterior a esta, seria puramente letrista. Ora o que é a poesia senão o momento revolucionário da linguagem, e como tal não separável dos momentos revolucionários da História, bem como da história da vida pessoal?" Por isso vimos repetindo que não há mais clamorosa declaração da ineficácia de uma obra poética do que o momento em que esta aceita ser colhida pelos louvores oficiais, ver-se garantida pelo enredo institucional. Mas a poesia dos nossos não faz mais do que coleccionar os troféus que a reputam como inane - boa para consumo da população em geral. O mesmo princípio é que distingue uma verdadeira conversa. Como nos diz o poeta José Emilio Pacheco, "a conversa morre quando dizemos sim a tudo. Falar significa discordar. Não há troca sem controvérsia. O sermão e o dogma são estranhos ao ensaio. Não peço a um ensaio que confirme as minhas crenças ou preconceitos. Espero que ele abra outra porta, me faça ver o que nunca vi, ponha à prova tudo o que até então eu supunha". Hoje, a linguagem deixou-se absorver enquanto signo de confirmação, triunfam os discursos que fornecem falsos bilhetes de ...
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    2 hrs and 57 mins
  • O futebol e outras civilizações ficcionais. Outra conversa com Carlos Maria Bobone
    May 30 2025
    Teria sido bom se em vez de cigarros e outros vícios ocasionais, tivéssemos aprendido um instrumento, desses que puxam por nós, tornam mais fértil a solidão, e nos levam por lugares perdidos à boleia do som, frequentando uma gente que prescindiu de se fazer interessante, de se explicar, coleccionar temas e opiniões, mas que prefere outro ângulo do mundo, outras frequências, prometer o sangue a uma circulação mais vasta, prescindir do teatro de quem está aí para nos dizer uma e outra vez quem é, antes tornar-se um nativo do fundo, das regiões que acatam todo o balanço, gostam de ranger com o mundo. A música bem pode ser uma forma de jogo que persiste até mais tarde na vida. Quem forma bandas ou acede a essa promiscuidade tão fluída das formações que despontam de forma ocasional, acidental, são os miúdos que se defendem da realidade através dessas formas de recreio sonoro. Devemos pensar na teoria dos círculos mágicos de que fala Huizinga, esses que se desenham numa situação de jogo, o qual não apenas geram uma zona nova, sujeita a outras leis ou regras particulares, mas também se extrai do contexto geral, e admite possibilidades mais profundas de recração, activando modos de atenção particularmente fortes que, para alguns, são negativamente associados a formas de distracção frívolas, superficiais e improdutivas. Ao longo da história, como lembra Patrícia Gouveia, no catálogo da exposição Playmode, brincar e jogar foram habitualmente considerados opostos à disciplina, ao trabalho, à seriedade. Mas, em Homo Ludens, Huizinga vincou como “o conceito de jogo pertence a uma ordem mais elevada do que a seriedade dado que esta procura excluir a ideia de jogo, enquanto que o jogo pode perfeitamente integrar a ideia de seriedade”. Esta seriedade do jogo nada tem que ver com uma questão de produtividade, eficiência, ou qualquer dessas medidas do enredo capitalista. Huizinga preferia evocar a forma de envolvimento do jogador em formas de acção sublime e sagrada com a mais alta seriedade, arrebatamento e absorção. É esse modo de sublimar e de construir um enredo alternativo que integra uma série de propriedades mágicas que autonomiza os círculos do jogo. “Perfeito é não quebrar a imaginária linha”, escreveu Sophia. Assim, o jogo é um ensaio rebelde, um impulso de transformação decisiva, que pensa por propor um outro modo, mudar, escapar, dar margem para uma ficção que chega a ser para nós bem mais decisiva, bem mais absorvente e cativante. Como assinalava alguém, no jogo há qualquer coisa “em jogo” que transcende as necessidades imediatas da vida e que confere sentido à acção. Em certo sentido podemos encarar o futebol como um jogo que foi levado ao extremo e se impôs como uma espécie de civilização ficcional, com a sua mitologia própria, os seus heróis, e a sua carga de epicidade estupenda, que serve um recreio àqueles que viram o caminho para a infância e as liturgias do jogo serem-lhes proibidas. Em O Jogo da Glória, Carlos Maria Bobone nota como o desporto tem para nós “esta função escandalosa de oferecer uma escapatória ao destino e mostrar que, pelo menos, podemos criar qualquer coisa que nos diverte a partir de todo o mal que fazemos”… Mas e porquê? “Porque a vida em geral precisa de alívio, precisa que nos libertemos das suas finalidades, é que um desporto como o futebol pode ser tão apelativo. Não há nada necessário em chutar uma bola, nada funcional em marcar um golo. Um desporto destes liberta de uma obrigação mais geral de viver a vida e do peso dessa obrigação.” Neste episódio vamos andar à volta destas possibilidades de recreação e de ficção, nos modos mais ou menos subtis de insubordinação, e para isso, contámos com o apoio do Benjamin-velhinho, este reaccionário erudito, que se tem desdobrado entre ensaios de algum fôlego sobre aspectos mais ou menos centrais da cultura, sempre de forma esclarecida e saborosa. Também tem mantido uma empenhada acção crítica, e é alguém que traz um relógio de pulso que se ouve pela sala como um metrónomo. Ora, se queremos saber que horas são, qual é a nossa circunstância presente, devemos reconhecer que qualquer época deve, necessariamente, ser aferida através de uma relação crítica. “É unicamente através dela que a humanidade se pode tornar consciente do ponto a que chegou”, diz-nos Oscar Wilde. “É a Crítica, como sublinha Arnold, que cria a atmosfera intelectual de uma época. É a Crítica, como espero vir a sublinhá-lo eu um dia, que faz do espírito um instrumento preciso. Nós, com o nosso sistema educativo, derreámos a memória com uma carga de factos desconexos, e tentámos transmitir esforçadamente os conhecimentos que esforçadamente adquirimos. Ensinamos as pessoas a lembrar-se, nunca as ensinamos a crescer. Nunca nos ocorreu tentar desenvolver no espírito uma qualidade de apreensão e discernimento ...
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    3 hrs and 33 mins
  • O real como transcendência. Uma conversa com Luís Bernardo
    May 23 2025

    Está difícil imaginar como vamos fazer os desertos engasgarem-se de novo com as marés. Parecemos estar reduzidos a uma política em migalhas, política apenas concebida como mecanismo de substituição do real por ficções, mesmo porque, como assinalava Enrique Lihn, "nada é suficientemente real para um fantasma", e são apenas fantasmas aquilo que produz este mundo sucessivamente diluído que nos é posto diante dos olhos pelos ecrãs, de tal modo que não falta muito até que mesmo a palavra "homem" passe a ser ouvida com suspeita, ferindo as narinas delicadas de quem prefere esse onirismo maquínico. Não houve mais notícia dos tais grupúsculos enraivecidos que faziam do seu desespero um elemento de combate. No abalo insípido das visões propagadas no reino digital, hoje, são cada vez mais aqueles tomados de uma esperança bolorenta, aqueles que se oferecem para desposar a noiva fascista, num romantismo vivido até às fezes. Com esta virulência mundializada da questão nacional, e o recrudescimento dos orgulhos de facção, quem não tem deus vê-se a vaguear por territórios tomados pelo fervor que inspiram os mais imbecis líderes de culto, com o seu messianismo descocado que baptiza os ressentidos em novos convertidos às religiões de salvação. Entretanto, as pontes para outro lugar, para ilhas de realidade foram cortadas. Resta-nos viver como náufragos entre este bando de zelotas. Os poucos ecos que nos alcançam, como murmúrios de outro mundo, animam por instantes esses êxtases fugitivos da História. São algumas vozes presas em idiomas que em breve serão proibidos e que ainda nos trazem alguma frescura: "Após o colapso da nossa civilização, ou ela perecerá completamente, como as civilizações antigas, ou adaptar-se-á a um mundo descentralizado", escreve Simone Weil. "A nossa época destruiu a hierarquia interna; como é que pode permitir que a hierarquia social, que não passa de uma imagem grotesca dela, sobreviva? Não podíamos ter nascido numa época melhor do que esta, em que tudo se perdeu." Antes que o homem deixe de ter qualquer significado, podemos antecipar como muito em breve mesmo o nosso sono estará sob vigilância, e, para efeitos de cura e de terapia há-de haver prescrições de sonhos guiados pelas máquinas. Em lugar de descidas ao inferno, seremos revistados no própio inconsciente, isto se não formos simplesmente dizimados. Só quando dormimos é que ainda somos minimamente livres. De resto, como já alguns notaram, a comunicação tornou-se atmosférica. O excesso de estímulos impede que assimilemos sequer as informações que nos são vitais, e às tantas nem sabemos distinguir umas das outras, de tanto estarmos envoltos nesta segunda realidade. De repente, mesmo as nossas memórias gaguejam, sabemos isto e aquilo sem nos lembrarmos de onde veio essa noção, relato ou imagem. As fontes confundem-se, evaporam-se. Somos acossados, e não há filtro suficientemente potente para escaparmos a todo este fogo cruzado. "A demência é sistémica", diz-nos Bifo Berardi, "não patológica: tem vindo a alastrar-se desde que a aceleração do estímulo neural começou a produzir efeitos de pânico e depressão. E tem gradualmente tornado impossível o pensamento sequencial, crítico, racional, ou apenas razoável. Por esta razão, a demência deve ser o principal objecto da nossa atenção teórica, analítica e política, mesmo que eu não pense que exista uma possibilidade de a remediar. O ritmo da infosfera não pode ser abrandado de forma alguma, porque o cérebro humano está agora dependente dele e não pode tolerar uma redução da intensidade do neuro-estímulo. De qualquer modo, já é demasiado tarde: a demência já produziu o seu mundo." Todo este contexto absorve-nos e reproduz em nós os mesmos impulsos nervosos, entre a irritação e as contracções de alguém dominado por essa síndrome de Tourette epocal, ou, noutras alturas, desfeito, num estado de catatonia. Neste episódio juntou-se a nós Luís Bernardo, um tipo que arrasta num saco de batatas a História, aos tombos todo o caminho, cuspindo injúrias em múltiplas línguas, alguém que atira com ela para cima de qualquer mesa onde esteja aberto um mapa como um tabuleiro de jogo para os generais de estúdio de televisão fazerem aquela fita de grandes senhores, um tipo que tem um candeeiro aceso na última janela e estuda pela noite fora as intimidades da guerra.

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    4 hrs and 1 min
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